Singapura complica (ainda mais) a contratação de expatriados

Vanessa Mendão

A apresentação do novo orçamento de estado em Singapura trouxe novidades que acentuam o descontentamento de grande parte da população com a presença de estrangeiros no país. A pandemia de Covid-19 dilapidou uma grande quantidade de postos de trabalho e acelerou a partida de muitas famílias expatriadas, como por exemplo, a minha. 

Um de nós tinha emprego na Deloitte há seis meses, e o outro estava em fase de negociação com a CBRE. De um dia para outro, ficamos os dois sem trabalho e sem perspectivas. E com 30 dias para sair do país a menos que encontrássemos um novo trabalho nesse período. 

Singapura conta com leis de imigracão estritas e com um complexo sistema de visados de modo a controlar a entrada e a permanência de estrangeiros na cidade-estado. Não é possível residir no país durante mais de um mês sem ter trabalho e vistos. 

Trinta dias para organizar uma mudança intercontinental, cancelar a escola da nossa filha, deixar o apartamento e dizer adeus a 5 anos de vida no sudeste asiático. Em plena pandemia. 

Apesar de projetar uma imagem de tolerância e abertura, Singapura tem em vigor um sistema politico e social altamente classista que divide os seus residentes em funcão da sua nacionalidade, etnia, sexo, estado civil e salário.

Existem no país diferentes tipos de visto de trabalho e residência. Estes são os mais comuns:

  • Employment pass (EP) – Para profissionais estrangeiros, gestores e executivos. Um EP tem direito a trazer consigo para Singapura cônjuges e filhos. Conjuges equivale aqui a casais heterosexuais com casamento registrado. As uniões de fato não são reconhecidas.
  • Dependant’s pass (DP) – para cônjuges e filhos de pessoas com Employment Pass. 
  • Letter of Consent (LOC) – um documento aprovado pelo governo permitia os portadores de DP trabalharem sem ter o seu próprio EP. 

O que muda?

As principais diferenças para o ano que ainda agora começou estão no salário necessário para solicitar um EPs e no fim das Letters of Consent.  

A retribuição mensal mínima para detentores de EP sem família a cargo passa de SG$4,500 (€2,800/US$3,300) a SG$6,000 (€3,700/US$4,500). Com DP a cargo o salário mínimo sobe agora de SG$6,000 para SG$9,000 (€5,600/€6,700). Uma diferença abismal, a que muitas empresas não poderão ou quererão fazer frente.Para quem já tem EP, haverá um período de ajuste. Para todos os novos pedidos, estas serão as regras

O fim das Letters of Consent acaba também com a única possibilidade que muitas pessoas tinham para aceder ao mercado de trabalho no país. 

É de salientar que todas as empresas estão sujeitas a quotas de trabalhadores estrangeiros nos seus quadros (as LOC não contam para estes efeitos). Cada emprego tem que abrir durante pelo menos duas semanas exclusivamente para cidadãos e residentes permanentes. Só se ninguém nestes dois grupos reunir os requisitos é que a vaga poderá ser aberta aos estrangeiros. Mesmo assim, a empresa terá que justificar a decisão de contratar um estrangeiro em vez de um singapurense. Há ainda uma série de profissões reservadas a residentes permanentes e a singapurenses. 

Para mais, todas as LOC deixarão de ser válidas a partir de Maio deste ano. Uma surpresa enorme para quem contribui para a economia familiar na cidade mais cara do mundo. 

Os detentores de LOC só têm assim 3 opções: 

  1. Conseguir em dois meses um emprego que pague SG$9,000 por ano
  2. Deixar de contribuir para a economia familiar 
  3. Deixar o país e iniciar o processo de repatriação da família.

Uma quarta alternativa seria requerer Residência Permanente mas o processo é demorado (mais de 6 meses) e a taxa de aprovação é extremamente baixa. O governo não revela os critérios de elegibilidade nem justifica as rejeições. A transparência é nula.

Chinatown, em Singapura
Chinatown, área comercial de Singapura

Quem será mais afetado?

A grande maioria das pessoas que trabalham através de LOC são mulheres e seremos sem dúvida alguma nós mais afetadas por estas novas medidas ao deixar de ter acesso ao mercado laboral. 

Amigas que continuam em Singapura já começaram a dar conta das consequências destas medidas. Cristina Diaz, professora de espanhol, abriu a sua própria companhia quando o governo ainda permitia aos estrangeiros serem titulares unipessoais de empresas. Depois disso, passou a ter a sua própria LOC, dependente do EP do marido. Agora vai fechar e regressar a Barcelona. Dezenas de estudantes ficam sem aulas de espanhol.

Para ela ficar num país onde dificilmente poderá trabalhar e assim contribuir para o rendimento da família não é uma opção. Para já a ideia é voltar para Espanha onde espera recuperar o seu lugar na bolsa de trabalho da Generalitat. Mais tarde juntar-se-á a filha, Aurora, agora com 4 anos, nascida em Singapura (mas com passaporte espanhol). Numa terceira fase, o marido, Pedro, deixará o país asiático para se reunir com a família. 

Como Cristina outras tantas: trabalhadoras a tempo inteiro ou parcial em diversos setores. Todas agora a ponto de perderem o seu trabalho de um momento para o outro. 

A ironia destas medidas

O governo da cidade estado considera que deste modo se abrirão mais oportunidades para os seus cidadãos. Anja Valentino conta que a escola do filho poderá fechar. A grande maioria dos professores e administrativos trabalham com LOC. O conhecimento de línguas e a experiência em cenários multiculturais faz dos expatriados em Singapura os candidatos ideais para trabalhar em educação. Sem estas pessoas, a escola não poderá fornecer os mesmos serviços com a mesma qualidade. 

Para agravar o sentimento dos expatriados para quem de repente Singapura pouco ou nada tem a oferecer há que ter em conta o seguinte:

  1. Uma creche privada custa a volta de SG$1,000 (€640/US$740por mês. As escolas internacionais podem custar SG$40,000 (€25,000/US$30,000) por ano. Os cidadãos e residentes permanentes não pagam por este serviços (entre outras coisas porque o governo não permite que eles estudem em escolas internacionais criando assim um abismo entre alunos). 
  2. Cada consulta médica chega facilmente aos SG$200 (€125/US$150) sem medicação ou exames. Os cidadãos e residentes permanentes também não pagam por este serviço. 
  3. O imposto a pagar por ter uma empregada doméstica é de SG$300 (€190/US$220) mensais para um expatriado e SG$60 (€40/US$45) para um cidadão. 

Os expatriados suportam grande parte das necessidades do país mas o governo (o mesmo desde 1965) esconde essa realidade e apoia as ideias populistas de que os estrangeiros roubam trabalhos e são indesejados. As consequências destas medidas serão visíveis a curto e a longo prazo em diversas áreas da economia e do tecido social. Veremos se o red dot se mantém como economia exemplar do sudeste asiático. 

Mais sobre Singapura aqui.

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