A vida em Manhattan tem pequenas coisas nas quais deixei de reparar ao longo dos anos. Já não sei dizer qual foi a primeira vez que as vi e ouvi, porque são rotineiras no dia-a-dia nesta cidade. No entanto, tal como em muitas outras coisas, os meus filhos ajudaram-me a recuperar esse olhar inicial e ensinaram-me a parar para observar e celebrar alguns dos detalhes da nossa vida aqui.
Sons da cidade
Um dos sons mais característicos da cidade de Nova Iorque é o das sirenes e do trânsito. Como aponta um dos meus escritores preferidos, uma das grandes diferenças entre a cidade e o campo é o efeito que tem em nós o som de uma sirene de ambulância. Num meio pequeno indica que alguém que conhecemos está a caminho do hospital. Numa grande cidade noto que há uma dessensibilização de eventos significativos como esse. Tendo já vivido nas imediações de dois hospitais num bairro de Manhattan, comecei a valorizar ainda mais os vidros duplos na escolha de apartamentos. Deixei de prestar atenção a esses sons. Até ao momento em que o meu filho mais novo, um apaixonado por veículos de todos os tipos, passou a identificar com um entusiasmo contagiante as diferentes sirenes dos carros de bombeiros, ambulâncias e carros da polícia que passam nas ruas de Nova Iorque.
Se estamos a pé a caminho da escola, vejo os seus olhos arregalados e o virar da cabeça na direção do som, acompanhado de um “Olha, mãe!”, cada vez que passa um desses fascinantes veículos. Há ainda o som dos autocarros, que vêm em cores e comprimentos diferentes. Se estamos em casa, há a urgência de ir à janela espreitar e definir o tipo de veículo que passa lá em baixo na sequência do som de uma sirene. E depois brincamos com as réplicas desses mesmos veículos, que são alguns dos brinquedos de uma criança nova-iorquina, com a mesma intensidade com que conduziríamos um deles de verdade. Nos percursos para a escola também estão muito presentes os ruídos do chiar do metro nos carris debaixo do chão, que se ouvem através das grelhas no passeio. Revelam-nos esse outro mundo subterrâneo que não escapa à pressa e à acumulação de gente. Outro som característico que faz as crianças sorrir é o da carrinha de gelados Mr. Softee. A música ouve-se a quarteirões de distância e deixa um rasto de alegria. Menos interessante, mas definitivamente constante em Nova Iorque, é o som de máquinas de obras. E as escavadoras amarelas cativam os olhos e os interesses dos mais novos.
Vida da varanda
Numa cidade como Nova Iorque, sempre a crescer em altura, ter uma varanda (ainda que pequena) torna-se um luxo muito apreciado. Se durante dois anos não usámos a nossa, pelas vertigens que os mais de vinte andares de altura nos causavam com duas crianças pequenas em casa, passámos a usá-la diariamente durante o confinamento da primavera de 2020. Era um evento familiar, às 7 da tarde, irmos lá para fora bater palmas aos profissionais de saúde durante a pandemia do coronavírus. Víamos e acenávamos aos vizinhos, com quem não convivemos durante meses. Ir lá fora respirar tornou-se habitual e necessário.
Passado mais de um ano, ainda hoje assisto ao fascínio dos meus filhos perante a vida lá em baixo. Olhamos as varandas ou janelas dos prédios em frente, do outro lado da Avenida. Passei a reparar, qual janela indiscreta, na decoração de outros apartamentos, revelada pelas janelas sem cortinas. E a admirar o mobiliário de exterior dos terraços e varandas, dos vasos e canteiros alheios. O mais impressionante é o grande terraço do vizinho naquele prédio que vejo de esguelha a sudeste do nosso. Mesmo de longe, vejo nele magníficas plantas (árvores, arbustos e flores decerto cuidados por um jardineiro profissional), que estão sempre viçosas e cujo verde é um oásis no meio do cimento e tijolo da cidade. Hoje em dia, na primavera, também já temos um pequenino jardim na nossa varanda, e até uma mini horta. Tem sido o deleite dos meus filhos perante a rapidez com que pequenas sementes rompem a terra e aparecem cá fora em busca do sol, para depois crescerem e vingarem, no alto do nosso prédio em Manhattan. Qualquer que seja o número de metros quadrados, um espaço exterior liga-nos aos outros e é uma ponte no anonimato de uma cidade sobrelotada. Quando cai a noite, os milhares de luzinhas em altura assinalam cada janela em que mais alguém ainda está acordado.
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Adorei ler este teu texto, Raquel. De pequenos acontecimentos e observações se faz uma bela crónica. Também concordo contigo na escolha de um dos teus escritores favoritos, o Joel Neto.