Enquanto emigrantes portugueses espalhados pelo mundo, com todas as nossas diferenças e mesmo vivendo em locais distantes, sentimos por vezes que muito mais é o que nos une do que aquilo que nos separa. Sendo duas psicólogas portuguesas em Nova York e Tóquio que nunca se encontraram presencialmente, partilhamos o interesse pelo multilinguismo e multiculturalidade em que vivemos e em que educamos os nossos filhos. Decidimos, por isso, escrever sobre a importância da língua portuguesa como língua de herança, legado cultural e identitário nas famílias portuguesas que estão fora de Portugal.
Língua Portuguesa– Língua de herança
A língua de herança é a “língua adquirida junto da família e da comunidade de origem deslocalizada, num ambiente linguístico maioritário” (Melo-Pfeifer, 2018). É assim chamada por ser transmitida junto da família, no dia a dia, e por não ser a língua dominante do país onde se vive. Por exemplo, o “português enquanto língua de herança” é o português aprendido e usado por filhos e netos de portugueses que nasceram ou que vivem noutros países do mundo.
Quando decidimos, como pais, ensinar a língua portuguesa aos filhos, fazêmo-lo porque queremos, muitas vezes, que eles não só se tornem bilíngues, por todos os benefícios que isso traz, mas também por questões afetivas e de vínculo ao nosso país e às nossas famílias em Portugal. A língua ajuda a estabelecer laços afetivos mais profundos com os familiares mais próximos, como os pais e irmãos, mas também com a família distante em Portugal, como os avós, primos, tios e outros.
A língua enquanto legado cultural
Ao mesmo tempo que promovemos o desenvolvimento da nossa língua materna, estamos a dar às nossas crianças uma parte importante da sua história familiar, a ajudar a construir o seu sentimento de identidade e de pertença. Com a língua de herança, estamos a criar um lugar dentro dos seus corações para as suas raízes identitárias. A língua portuguesa torna-se, assim, parte do legado que vai para além das palavras que aprendem e usam para comunicar. Permite aos nossos filhos desenvolver uma ligação emocional especial com Portugal e com essa parte de si que é, também, portuguesa. A língua de herança vai permitir moldar e conciliar valores de origem com os do local em que se encontram.
Desafios no uso da língua de herança
Este processo nem sempre é fácil. Usar a língua de herança pode acontecer de forma natural, positiva e enriquecedora, mas também pode trazer experiências e sentimentos de frustração, resistência ou até vergonha. Por exemplo, quando a família em Portugal espera que o português seja a língua dominante e isso não acontece, ou quando as crianças têm sotaque estrangeiro, o que pode gerar algum desconforto. Todas estas emoções, por sua vez, vão influenciar a forma como as crianças aprendem e vivem essa língua, podendo estar mais ou menos motivadas e ter experiência mais ou menos positivas com a língua de herança.
Como passar aos nossos filhos a língua de herança?
Seguem alguns exemplos práticos que podemos experimentar com os nossos filhos:
– Ler contos tradicionais portugueses ou até traduzidos
– Cantar e ouvir músicas em português, dando a conhecer artistas portugueses
– Ensinar lenga-lengas, rimas e provérbios portugueses
– Cozinhar pratos típicos portugueses com os nossos filhos
– Manter celebrações e tradições da nossa família de origem
– Festejar feriados portugueses
– Partilhar brincadeiras e aventuras da nossa infância
– Quando viajamos a Portugal, dar a conhecer os locais onde crescemos e partilhar
histórias de família
– Trazer brinquedos, livros ou outros objetos das viagens a Portugal
– Rever fotografias e filmes feitos com a família e amigos em Portugal, para assim ajudar
a criar e manter memórias desses momentos
A língua é como uma bússola identitária. Permite às nossas crianças, que nasceram ou vivem fora do nosso país, conhecer as suas origens e ter mais um destino, se assim o entenderem, no futuro. Esperamos que os nossos filhos possam continuar os seus próprios caminhos como cidadãos do mundo, com a sua bagagem cheia deste legado imaterial, tão precioso, e sabendo que o seu Norte poderá, quem sabe um dia, ser Portugal.
Marta Castro e Raquel Ferreira
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