Reflexões sobre um país que está a usar a pandemia como arma política
A Hungria é o país do mundo com maior taxa de mortalidade por coronavírus, por milhão de habitantes. Num país com 10 milhões de habitantes – o mesmo que Portugal, daí a comparação ser bastante fácil – registaram-se quase 30,000 mortes desde o início da pandemia, ao contrário das 17,000 ocorridas no nosso país.
Vacinação
Por outro lado, a Hungria é também um dos países do mundo que já vacinou mais. À data da redação deste artigo (fim de maio de 2021) mais de 5 milhões de pessoas já receberam uma ou as duas doses da vacina. Ainda assim, o número de mortos teima em não baixar, mantendo-se nos cerca de 50 por dia. Os locais apontam a precariedade dos cuidados de saúde nacionais como um dos motivos. A recusa de alguns sectores da população em receber a vacina, certamente, contribuirá para isto também.
A Hungria é dos países que mais vacinou até agora porque encontra-se numa situação diferente do resto da União Europeia. No primeiro trimestre de 2021, a vacinação começou lentamente na Europa. Havia poucas vacinas disponíveis e as que iam chegando iam sendo distribuídas pelos grupos prioritários. A diferença é que enquanto os países da UE estavam dependentes de apenas 3 vacinas (Pfizer, AstraZeneca e Moderna), a Hungria assinou contratos com a Rússia e a China, começando a administrar as vacinas Sputnik e Sinopharm, contra as recomendações da Agência Europeia do Medicamento.
O resultado: liderança do número de vacinações na União Europeia. E uma propaganda forte por parte do governo no sentido de convencer a população de que todas as vacinas são seguras. A reação por parte dos Húngaros a esta situação, como em todos os casos polémicos, depende.
Entre os meus conhecidos, há pessoas que levaram todos os tipos de vacina. Umas não se importavam com qual vacina receberiam, apenas queriam receber uma, qualquer que fosse. Outras pessoas esperaram até conseguirem uma das vacinas aprovadas na Europa – e aqui está outra diferença na vacinação na Hungria: a possibilidade de escolha da vacina.
O pressuposto
Recuemos uns meses até ao início deste ano. As primeiras doses de todas as vacinas começaram a ser administradas aos grupos prioritários: idosos, profissionais de saúde, militares, funcionários públicos. Em teoria, segundo o anunciado pelo governo, seguir-se-iam os doentes de risco, abrindo-se depois a vacinação à população em geral. A vacina era administrada pelo médico de família, e cada médico ia recebendo listas de pacientes a quem dar a vacina na semana seguinte.
A confusão a instalar-se
E foi então que começou a confusão. No início de março, correu a notícia de que havia doses extra de AstraZeneca num hospital de Budapeste. Centenas de pessoas fizeram fila, e acabaram a ser vacinadas nesse mesmo dia. Depois, começaram a surgir histórias de pessoas jovens vacinadas porque “os médicos de família não tinham mais ninguém a quem dar a vacina”. A gestão era feita localmente, ou seja, enquanto um médico poderia não ter nenhum paciente prioritário na sua lista, o médico da rua ao lado tinha uma lista enorme de pacientes mais velhos e com doenças, mas isso não importava.
Entretanto, começaram a sobrar vacinas da AstraZeneca, Sputnik e Sinopahrm. O governo criou um site onde as pessoas puderam começar a agendar a sua vacinação, muitas vezes de um dia para o outro. E foi assim que, semana após semana, a maior parte dos meus amigos, de 20 e 30 anos, foi sendo vacinada. Ao mesmo tempo, em Portugal, a minha avó de 76 anos ainda não tinha recebido a primeira dose sequer.
Novas questões
Eu consegui a primeira dose de Pfizer em meados de maio – aqui em Budapeste, felizmente, porque o país não reconhece vacinas que tenham sido administradas no estrangeiro. Mas agora, levantam-se novas questões. O governo Húngaro criou um “Certificado de Imunidade”, um cartão de plástico que atesta que uma pessoa está imune contra a covid-19. Em teoria, este cartão é enviado por correio para as pessoas após a toma da primeira dose.
O cartão chave
Este cartão é a chave mágica que abre a porta do regresso à vida normal. Apenas os portadores deste cartão podem fazer uma série de atividades, como frequentar hotéis, o interior dos restaurantes, o ginásio, cinema ou espetáculos.
O problema? Os atrasos no envio deste cartão, ou o não envio de todo. São imensos os estrangeiros em grupos no Facebook a queixarem-se de que receberam a vacina, mas não receberam o cartão. Alguns não têm número de segurança social (estudantes, por exemplo), outros têm-no, mas não têm acesso a um portal do governo para gestão de assuntos administrativos online, e não podem pedir o reenvio do cartão caso este não tenha chegado.
À data da escrita, contam-se 8 dias após a toma da minha primeira vacina, por isso seria expectável que ainda não tivesse recebido o cartão, o que é o caso. O procedimento a tomar é esperar mais umas semanas e então, caso o cartão mágico não chegue, dirigir-me às autoridades. Mas vamos acreditar que vai chegar!
Por estes dias, andar pelas ruas de Budapeste dá uma sensação de andar para trás no tempo. Parece que voltamos a 2019, onde a vida corre a passo normal. Onde tudo está aberto, onde grupos de amigos se reúnem nas esplanadas, onde as pessoas se abraçam.
Mas há questões que o governo terá que responder muito em breve. A União Europeia anunciou esta semana a criação de um passaporte que permitirá às pessoas vacinadas (ou com testes negativos) circular livremente no espaço Schengen, numa tentativa de reanimar a economia no Verão que está a chegar. A Hungria mantém as fronteiras terminantemente fechadas à entrada de estrangeiros, independentemente dos testes ou vacinas que possam ter. A única exceção é feita a estrangeiros que residam oficialmente no país.
A exceção à regra
Em breve, haverá outra exceção: os espetadores com bilhetes para o Campeonato Europeu de Futebol, que terá alguns jogos em Budapeste, incluindo um da seleção Portuguesa. Essas pessoas poderão entrar no país e permanecer 72 horas. Mas nenhuma delas terá o cartão de imunidade Húngaro. Quererá isso dizer que não podem ficar em hotéis? Que não podem frequentar o interior de restaurantes? Parece uma situação demasiado incomportável para se concretizar, e uma oportunidade perdida para os negócios locais de fazerem alguma faturação, depois de mais de um ano de quase inatividade.
E depois…?!
E depois do Euro? O país volta a fechar-se? E perde a possibilidade de trazer dinheiro estrangeiro aos empresários locais, enquanto o resto dos países europeus se prepararam para fomentar a atividade turística, tão afetada por esta pandemia?
São questões que terão resposta nas próximas semanas. Seja como for, agora há uma luz ao fundo do túnel.
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