A pandemia Covid-19 no Peru

Elisabete Souto

A pandemia Covid-19 no Peru: alguns dados e considerações

O Peru foi dos primeiros países da América do Sul a adotar medidas de proteção perante a pandemia. À semelhança da maior parte dos países da América Latina, crê-se que o vírus tenha chegado ao Peru nos meses de fevereiro/março de 2020. O primeiro caso foi oficialmente confirmado no dia 5 de março e a 17 do mesmo mês havia um total de 145 casos confirmados. 

O governo peruano decretou “Estado de Emergência Sanitária” no dia 15 de março. Nessa altura algumas das medidas adotadas foram:

– fecho das fronteiras 

– recolher obrigatório (entre as 18h e as 4h)

– proibição de transporte (terrestre e aéreo) entre províncias

– encerramento das escolas

– proibição de sair de casa, exceto para tarefas essenciais como comprar alimentos e ir à farmácia

– saídas (para atividades essenciais) em dias alternados para homens e mulheres

A 25 de maio (pouco mais de 2 meses após as referidas medidas serem adotadas) o Peru já tinha registado quase 120 mil casos de Covid-19 e cerca de 3500 mortes, colocando o país no topo dos países sul-americanos com maior número de casos per capita. 

Se é verdade que o país realizou mais testes de rastreio do que os seus vizinhos, também se pode afirmar que isso não explica os números tão altos e o porquê de ter havido tanta dificuldade em controlar a onda de contágios durante os primeiros meses da pandemia, apesar de todas as medidas adotadas. As duras medidas implementadas  não surtiram o efeito desejado pelas autoridades por vários motivos: 

– a grande maioria da população peruana vive da chamada “economia informal”, ou seja, trabalha em atividades de onde obtém a sua renda (salário) diariamente. É o caso, por exemplo, dos trabalhadores ambulantes que, para continuar a ganhar dinheiro todos os dias, se viram obrigados a “furar” o confinamento obrigatório para poder sobreviver;

– a maior parte dos peruanos (mais de 75% da população) não tem frigorífico ou congelador e, portanto, viram-se obrigados a fazer compras (quase) diariamente;

– para irem às compras os peruanos tiveram de usar os transportes públicos onde o distanciamento físico não era viável;

– foram às compras a mercados municipais cujos horários de funcionamento foram reduzidos, causando congestionamentos e concentração de pessoas em espaços semi fechados e com pouca ventilação;

– para colmatar as dificuldades económicas de muitas famílias o governo disponibilizou ajuda financeira. Para a receber os peruanos formaram filas intermináveis à porta dos bancos, desrespeitando o distanciamento – tudo porque também os bancos passaram a funcionar com horários reduzidos;

– em casa dos peruanos as coisas também não foram facilitadas porque as casas são, na sua esmagadora maioria, pequenas e nelas vivem famílias numerosas – muitas vezes 5 ou mais pessoas partilham o mesmo quarto. De igual modo, muitas não têm acesso a água (para lavar as mãos, por exemplo) nem recursos financeiros para comprar máscaras ou gel desinfetante;

As medidas impostas no Peru para conter a pandemia foram muito duras, especialmente para as crianças que se viram impedidas de sair, passear, brincar nos jardins públicos, comer em restaurantes, ir ao supermercado com os pais e, sobretudo, ficaram privadas de ir à escola…não um mês, dois ou três…foram meses a fio e no caso das escolas as medidas duraram 2 anos escolares completos! 

Quando chegámos ao Peru, em novembro de 2020, a nossa filha (na altura com 7 anos) não me podia acompanhar ao supermercado, não podia comer connosco num restaurante e não podia ir comigo abrir uma conta no banco. O meu filho (com 14 anos) pôde fazer isto tudo. Porquê? A forma como o país tratou as crianças durante a pandemia foi altamente prejudicial para o seu desenvolvimento social, cognitivo e para a sua saúde mental. Neste país as crianças foram erradamente vistas como o principal veículo transmissor do vírus, literalmente excluídas de participar socialmente, retidas em casa numa idade em que o contacto com os pares é fundamental para o seu desenvolvimento global. Nem mesmo com o exemplo de muitos outros países em que as crianças rapidamente regressaram às suas escolas e onde se provou que o aumento de casos não estava ligado a elas…nem mesmo assim, quem com poder de decisão, alterou essas medidas e as crianças peruanas acabaram por ser das útimas, em todo o mundo, a regressar à escola. 

Não vou sequer alongar-me aqui a falar do atraso global a que a maioria ficou sujeita depois de 2 anos de “aulas online”, ou das milhares que abandonaram a escola ou das centenas (milhares?) que foram vítimas de violência doméstica e forçadas a trabalhar para ajudar a manter a família ou que ficaram orfãs. A Unicef refere que só entre os meses de junho e novembro de 2020 a Linha de Apoio às crianças criada no início da pandemia recebeu mais de 2.500 queixas de negligência e/ou violência doméstica. A mesma instituição indica que cerca de 1.2 milhões de crianças peruanas caíram na pobreza em 2020. 

A verdade é que, apesar de todas e mais algumas medidas, apesar de todo o esforço financeiro para controlar a pandemia no país, há um ponto que ainda não foi abordado aqui e que, na minha humilde opinião, é a principal razão pela qual o Peru tem, hoje em dia, a mais alta taxa de mortalidade Covid (por 100 000 habitantes). A meu ver este número deve-se, pura e simplesmente, à falta de investimento na saúde. 

Antes da pandemia já o país sofria uma crise no setor da saúde que, com a chegada deste novo vírus, se agudizou. Falta de recursos humanos e materiais (escassez de Unidades de Cuidados Intensivos, de ventiladores, de pessoal médico especializado, de oxigénio, de camas, etc), má distribuição dos poucos recursos existentes com muitas regiões sem acesso a cuidados de saúde primários (sobretudo na região amazónica), etc. Apesar do crescimento económico do país na década anterior à pandemia, dos lucros recibidos com a extração mineira e o turismo, a verdade é que os sucessivos governos não souberam, não puderam (ou não quiseram) investir num dos setores que mais necessitava. E quando a pandemia bateu à porta, foi um desastre. Só entre março e junho de 2020 cerca de 6,7 milhões de pessoas ficaram desempregadas no Peru, vítimas de um conjunto de medidas que pouco ou nada contribuiram para o desacelerar do vírus.

Até à data o Peru continua a ser o país com a taxa de mortalidade mais alta (por 100 000 habitantes) e o único país (que eu tenha conhecimento) que obriga ao uso de máscara dupla (sim, leram bem, dupla) em espaços fechados e, só muito recentemente, tornou facultativo o uso de máscara em espaços abertos na região de Lima Metropolitana. 

Com a chegada das vacinas, o país tem acudido aos centros de vacinação mas não ao ritmo desejado pelas autoridades. Milhares de vacinas pediátricas foram descartadas por terem passado de prazo no passado mês de abril e há regiões com níveis baixos de vacinação. Quem tem mais de 18 anos precisa de apresentar o cartão de vacinação completo (3 doses) para poder entrar em supermercados, shoppings, estádios ou qualquer outro espaço semelhante, assim como viajar de autocarro ou avião. A população com mais de 50 anos já pode, inclusivamente, tomar a quarta dose da vacina. 

Para finalizar, deixo aqui os dados mais recentes retirados do site oficial do Ministério da Saúde peruano. À data de 30 de maio de 2022:

Casos confirmados – 3, 580, 051

Falecidos – 213, 173

Vacinados – 75,104, 916 doses administradas distribuídas da seguinte forma:

5 aos 11 anos – 76,1% (2 doses)

12 aos 17 anos – 72,5% (2 doses); 16,8% (3 doses)

18 aos 80 > anos – 73,9% (3 doses)

Fontes:

https://covid19.who.int/region/amro/country/pe

https://ourworldindata.org/coronavirus#explore-the-global-situation https://www.statista.com/statistics/1104709/coronavirus-deaths-worldwide-per-million-inhabitants/ https://www.unicef.org/peru/en/coronavirus/a-year-pandemic-year-action-Peru/ https://covid19.minsa.gob.pe/

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